A Menina de Rua
Eu me chamo Paulo e nasci em uma família abastada. Meu bisavô recebeu um título por mérito em uma batalha feroz. Com o título vieram terras e ele soube administrá-las e se tornou um milionário na época.
Era um herói e todos queriam trabalhar com e por ele. Realmente o que essas pessoas queriam eram ser protegidas em caso de um ataque, o que era comum na época.
Recebi tudo isso gratuitamente. Um nome mágico, abria portas em qualquer lugar.
Usei meu nome para me favorecer, principalmente com as mulheres. Eu as usava sem pudor e nenhuma responsabilidade. Eram objetos de prazer.
A vida é engraçada. Conheci uma menina na rua. Ela pedia esmolas para se alimentar. Era linda. Chamei-a para minha carruagem e lhe fiz a seguinte proposta:
― Venha comigo. Terá um teto, roupas bonitas e limpas, refeições fartas e talvez algumas joias. Só terá que me agradar, física, emocional e mentalmente. Pode ir embora a hora que quiser. Se não me agradar irá embora e levará tudo o que ganhou. Concorda?
A menina olhou de um modo desconfiado e perguntou:
― Quanto ganharei por dia para ser essa perfeição de pessoa?
Eu não esperava uma contraproposta. Fui pego de surpresa.
― Quanto quer ganhar? Sou generoso. ― improvisei.
― Ótimo! Assim não teremos valores fixos. Farei a minha parte e você me recompensará a altura.
― Como é seu nome, menina esperta?
― Sei lá. Fui jogada fora quando nasci. Uma mulher que me pegou por piedade, me chamou de Maria. Quando ela morreu, fiquei com a vizinha que me chamou de Amarilda. Quando ela se cansou de mim, fui morar na rua e me renomeei de Mary. Pode me dar qualquer nome, não faz diferença, não mudará minha vida em nada.
Essas palavras me desconcertaram. Eu nunca conhecera ninguém que tratasse a vida com tanta indiferença e, ao mesmo tempo, fosse tão segura do seu potencial.
― Gostei de Mary. Temos um acordo?
― Sim. Por onde começamos? ― perguntou com simplicidade.
― Um bom banho. Limpar todos os piolhos. Tem doença venérea?
― Não! Não faço sexo com vagabundos nojentos. Você tem?
― Não e nem pretendo. Sou muito exigente com as minhas companhias. Passará por um médico de minha confiança. Tudo bem?
― Por mim, está tudo bem.
Levei-a para uma casa que tinha na periferia. Lá eu não corria o risco de encontrar nenhum conhecido.
Deixei Mary aos cuidados de Sueli, minha governanta. Eu voltaria outro dia.
Sueli me avisou quando Mary já estava pronta para me receber.
Voltei na casa e me deslumbrei com a beleza de Mary. Eu nunca vira um rosto tão lindo e delicado. Estava bastante magra, mas isso em nada tirava sua elegância e altivez.
― Você é linda Mary. Foi bem tratada? Gostou das roupas que dona Sueli trouxe para você?
― Sim. Tudo foi perfeito até agora.
― O que mais gostou aqui, na sua nova casa?
Mary sorriu.
― Não é minha casa. Sou uma hóspede temporária.
Amei o gato.

― Gato?
― Sim. Na sua casa tem um lindo e adorável gato. Já somos amigos.
Quando comprei a casa, veio junto um gato chartreux.
Não soube o que dizer. Nunca prestara a atenção no gato e nem nos outros animais da casa.
― Conheceu a fonte? Eu a mandei fazer para compor o lindo jardim que mandei fazer.
― Não tive tempo para conhecer tudo. Sueli ficou me preparando para que eu me saia bem e o faça feliz nos próximos dias. Por que você não é feliz?
Ri.
― Sou feliz. Não sei de onde dona Sueli tirou essa ideia.
― Não foi ela, fui eu. Uma pessoa feliz não traz da rua uma desconhecida para satisfazê-la física, emocional e mentalmente. Você é terrivelmente só. Acha que os prazeres momentâneos da carne podem satisfazê-lo. Torná-lo poderoso ou bem-visto na sociedade. Já se perguntou quem é você, nesta vida? O que está fazendo aqui? Por que nasceu tão afortunado? O que esperam que você faça?
Olhei sem entender as palavras de Mary. Quem eu sou?
― Estou à sua disposição. O que faremos agora? ― disse Mary.
Ouvi a voz de Mary ao longe. Aquelas palavras reboavam em minha mente. Eu as ouvia em meus sonhos ou pesadelos, sei lá. Levei alguns segundos para me recompor.
Fiquei sem ação. Normalmente eu a chamaria para o quarto, faria sexo até me fartar, lhe daria alguma bugiganga, dormiria o resto do dia e a mandaria embora quando acordasse.
― Está se sentindo bem? Quer uma água? ― perguntou Mary.
― Não estou me sentindo bem. Preciso de ar fresco. Vou ao jardim.
― Posso acompanhá-lo?
― Se quiser. Não serei uma boa companhia hoje. Estou indisposto. ― menti.
Fui ao jardim, sentei-me em um banco de onde avistava a linda fonte. Mary sentou-se ao meu lado.
― Tem razão. O jardim é lindo e a fonte majestosa. ― falou Mary.
Pássaros bebiam água e se banhavam na fonte.
Levei algum tempo para me recompor. Como uma desconhecida, uma menina de rua repetiu as palavras que volta e meia se repetiam em meus sonhos. Eu as ignorava, mas agora não poderia mais. Não era uma coincidência.
― Você sabe quem você é, Mary? O que você está fazendo aqui? Por que nasceu e foi abandonada? O que você tem de fazer?
― Não tenho essas respostas. Uma cigana, mulher que lê a mão, me disse: você nasceu para ser uma pessoa boa e totalmente responsável por sua vida. Tudo o que te acontecer, você permitiu e deixou acontecer. Você fez um pacto antes de nascer e trouxe essa missão difícil que só terminará quando prestar contas após morrer. Aí o pacto terminará e você estará livre. Isso mudou a minha vida. Só deixo acontecer o que pode me fazer feliz. Acredito que quando morrer, continuarei a viver em outro lugar.
― Não entendi nada. Você morre e continua a viver?
― Sim, Paulo. Temos uma alma. Ela continua a viver. Foi assim que entendi.
Mary era diferente das outras mulheres. Passei a visitá-la diariamente. A relação entre nós passou a ser de admiração, respeito e amor.
Ela continuou a morar na casa e engravidou. Faleceu durante o parto e o bebê também. Experimentei a maior dor que um ser humano pode sentir. Amei Mary como jamais imaginei que poderia amar.
Alguns meses após o luto, comecei a procurar a religião para entender o que era alma, como era a vida após a morte e segui essa busca até o final de meus dias. Tinha uma esperança secreta de que Mary estava viva em algum lugar, em forma de alma e eu queria saber onde, assim, quando eu morresse iria encontrá-la.
Continuei minha busca.
Fim
― Obrigada, Paulo, por arranjar alguns momentos e me auxiliar na escrita desse livro que ainda não tem nome. Gostei muito da sua narrativa.