Em direção às nascentes
Nasci em um planeta do sistema solar de Kepler. Nosso organismo precisava de água e esse líquido precioso não era farto. Éramos verdadeiros nômades, seguíamos sempre em direção às nascentes, que secavam de tempo em tempo.
Foi uma encarnação onde aprendi o despego. Eu era o mais importante para mim e só levava o que podia carregar. O calor escaldante não dava trégua.
Não tínhamos nenhuma tecnologia, éramos primitivos. A única vantagem de ter nascido nesse planeta, foi a dura lição de que não somos uma ilha. Uma mão amiga lhe doava um pedaço de cana que o carregava de energia quando você já não conseguia mais caminhar. Uma barraca que alguém deixava você compartilhar um pouco de sombra nas horas mais quente.
Não havia roubo nem disputa. Cada fôlego era precioso demais para se manter vivo. A mortalidade era absurda, mas a natalidade também. Homens e mulheres eram livres para se amarem e seguirem seus caminhos. Não havia casamentos, só compartilhamento e obrigação de cuidarem dos descendentes. Essa lei era tão natural, que ninguém a questionava.
Minha geração começou a questionar para que servia a vida. Eu não gostava da minha e resolvi que não ia gerar uma criança para ser tão infeliz como eu.
Os mais velhos não entendiam a minha posição e nem deram importância.
Eu olhava para o dia que iluminava o planeta e o questionava: por que você nos castiga com a sede?
Olhava para a noite e a questionava: por que você vai embora, dando lugar ao dia que nos mata lentamente?
Tanto questionei que um dia, perdido em meus pensamentos, alguém lá dentro de mim disse: por que você corre atrás da água em vez de armazená-la?
Foi como se alguém gritasse em minha cabeça. Olhei para os lados para ver se alguém mais escutara.
― Você ouviu alguém gritar? ― perguntei.
― Ninguém gritou. Durma, já é tarde, amanhã caminharemos o dia inteiro.
― Voz, como armazeno água? ― gritei em meus pensamentos.
Não obtive resposta.
No dia seguinte, passamos por uma plantação de cana e fomos colhê-la. Um pedaço de cana nos dava energia, além de matar a sede.
A voz de dentro gritou: Cana só nasce em terra encharcada, a água está na terra, cave e pegue a água em vez de ir até a nascente.
Coloquei as mãos no ouvido. Olhei para o lado, ninguém ouviu. Quando contei, riram de mim.
Peguei uma enxada e comecei a fazer um buraco. De repente, a água apareceu, fez uma poça onde eu estava cavando.
O grupo que rira ficou boquiaberto.
― Não precisamos ir às nascentes, tem cana em todo lugar. Alguns riam, outros choravam.
― Que voz é essa? De onde ela vem? ― perguntaram.
― Do meu lado, atrás de mim, de cima, sei lá. Ela disse para armazenar a água e não, correr atrás dela.
Cavamos muitos buracos, alguns mais fundos. Deixamos a água descansar e ela ficou límpida. Comemoramos. Não marcharíamos mais debaixo do calor escaldante e nem morreríamos de sede.
Continuei a questionar: voz, de onde você vem? Você tem nome? Onde você mora?
Não tínhamos nenhuma espécie de religião. Achávamos que o dia nos matava e a noite nos curava.
Sempre que você se questiona, há uma explosão de consciência. Uma nova consciência nos faz enxergar novos caminhos. Isso é um despertar.
Assim que nos fixamos em um lugar, passamos a sentir a necessidade de moradias e mais conforto. A criatividade individual começou a diferenciar os grupos. Intuitivamente começamos a cultivar e plantar alimentos. Alguns se sobressaíram e os conflitos tiveram início. Os não produtivos queriam partilhar das plantações, invenções e tudo mais. É assim que todas as nações iniciam suas histórias.
Fim
Obrigada Alencar.