Meu nome é Moacir, quando eu tinha sete anos, morava em um bairro com ruas bonitas, casas luxuosas, bem cuidadas e com jardins lindos.
Ia à escola no período da tarde. Era manhã e eu brincava de pega-pega com as crianças da rua.
Uma a uma as crianças foram chamadas para suas casas, era hora do almoço. Sozinho na rua, fui para casa. Abri o portão, entrei e sentei nos degraus. A refeição só seria servida quando meus dois irmãos, Joel, com doze anos, e Gil, com nove anos, chegassem.
Não demorou muito. O portão abriu e o carro da família entrou. Ramiro, com seu uniforme de chofer, impecavelmente passado, estacionou e meus dois irmãos desceram.
Levantei-me, queria ser o primeiro a chegar. Estava na escada e corri para o lavabo, lavei às mãos e sentei-me à mesa.
Papai estava atrasado, ele era médico, o Dr. Silva, e não tinha horários definidos.
Ive, a governanta, estava de uniforme novo, azul-claro, com uma blusa branca, seus cabelos longos presos, elegante como sempre.
Ela nos serviu o almoço.
Estávamos na sobremesa quando papai chegou.
― Boa tarde, meninos!
― Boa tarde, papai! ― respondemos, os três, ao mesmo tempo.
― Está se formando um temporal. Fomos informados da possibilidade de um tornado. Fiquem em casa e, se a sirene tocar, corram para o abrigo subterrâneo e não saiam de lá até que o temporal termine. Mandei colocar um rádio no abrigo, espero que funcione. Tem tudo que vocês gostam de lambiscar. Tem comida para mais de um mês. Roupas, cobertores, ventiladores a bateria. Levem os deveres de casa, brinquedos e jogos que quiserem, e deixem tudo preparado, dona Ive se encarregará do resto. Providenciem tudo, assim que saírem da mesa.
― Vou para a escola? ― perguntei.
― Não haverá aula hoje. ― respondeu papai.
― Ficará conosco, esta tarde, papai? ― perguntou Joel.
― Não. Vou para a clínica. Tenho pacientes me esperando.
― E se houver um tornado? ― perguntei.
― Usarei o abrigo subterrâneo do prédio. Meus pacientes também irão para o abrigo. É melhor deixarem o Lulu com a coleira, preso e perto de vocês. Animais sentem o perigo e fogem. ― preveniu papai.
― Ele está sempre comigo, papai. Colocarei a coleira e farei o dever de casa no abrigo. Lulu não gosta de coleira em casa. ― falei.
Papai passou as recomendações para os outros três empregados e voltou para a clínica.
Eu sempre dormia após o almoço. Chamei o Lulu e fui para o quarto. Acordei com dona Ive me chamando.
― Vamos para o abrigo! Prenda o Lulu, ele está amedrontado e pode fugir. Seja rápido, a sirene está tocando.
Pulei da cama, coloquei a coleira no Lulu, peguei a minha mochila, o retrato da mamãe e desci as escadas correndo, puxando Lulu, que não queria descer.
Cheguei no abrigo e Joel me ajudou. Ele pegou o Lulu no colo, enquanto eu descia a escada com a mochila nas costas. Prendi o Lulu em uma argola na parede. Nunca o vi tão assustado.
O abrigo era no fundo do quintal. Meu irmão, Gil, chegou correndo e disse:
― Minha mochila, esqueci, vou buscá-la. E voltou correndo.
Joel gritou:
― Deixe a mochila, olha o tornado.
Olhei para a direção apontada por Joel e vi um enorme e apavorante tornado vindo em direção à vila.
Dona Ive, Ramiro, Maria, a cozinheira, e Sílvio, o jardineiro, vinham correndo e impediram Gil de voltar.
O abrigo foi fechado e descemos mais um andar. A luz era com sensor e acendia conforme nos movimentávamos.
Abracei Lulu. Não ouvíamos o vento, mas sentimos sua fúria, o tornado passou por cima de nós.
― Esqueci meu peixe. ― lamentou-se Gil.
― Papai mandou deixar tudo pronto. Pobre peixinho. ― falou Joel.
― Eu trouxe o seu peixe, a sua mochila, a luva de beisebol e os seus patins. Esqueci algo? ― perguntou dona Ive.
Gil sorriu.
― Obrigado dona Ive! A senhora é a melhor governanta do mundo.
Ouvimos um barulho enorme e nos assustamos. Alguma coisa caíra sobre o abrigo.
― O que foi isso? Perguntou assustada, Maria, a cozinheira.
― Acho que uma árvore caiu sobre a porta do abrigo. Fiquem calmos, verei se houve danos na porta. ― falou Ramiro, o chofer.
Ramiro subiu a escada e voltou.
― Não dá para abrir a porta. O vento continua muito forte. Acho que preciso de um café.
Havia uma cesta com sanduíches, garrafas térmicas, vários garrafões de água e muita guloseima.
Ficamos em silêncio. Lulu continuava com medo e eu também.
Ramiro sugeriu desligarmos a luz, pois passaríamos a noite no abrigo. Havia algo enorme em cima da porta. Podia ser uma árvore ou uma casa. Seja lá o que for, demorará a ser retirada.
Maria começou a chorar.
Dona Ive, se irritou e a mandou parar de histerismo.
Ficamos três dias soterrados. Tínhamos água, comida e o sistema de ventilação funcionou perfeitamente e não tivemos problemas para respirar.
No quarto dia, Lulu começou a latir e queria subir a escada. Soltei-o da argola e subi com ele e me assustei. O andar estava destruído, a porta não existia, só um amontoado de pedras e madeira. Lulu latia desesperadamente. Ouvi batidas. Peguei uma pedra e comecei a bater.
Ramiro estava ao meu lado e disse:
― Batamos mais, eles precisam saber que estamos aqui.
Ouvimos serras e uma britadeira. Um tubo desceu e ouvimos alguém gritar.
― Tem alguém aí, cachorrinho?
Começamos a gritar:
― Estamos presos. Gritávamos.
― Tem alguém ferido? Precisam de oxigênio? Estão com fome? Têm água?
Ramiro foi respondendo às perguntas. Esperamos mais de seis horas para vermos a luz do dia.
Alguém gritou lá de cima:
― Cavalheiros, primeiro as crianças e idosos, depois as mulheres.
― Vá, Moacir! ― ordenou dona Ives.
Lembrei do retrato da mamãe que havia ficado onde eu estava acomodado.
― Vou buscar o retrato da mamãe.
― O retrato está aqui. Sabia que você não o deixaria. ― disse Sílvio.
Uma cadeira suspensa desceu. Ramiro e dona Ive me ajudaram a colocar o equipamento. Peguei Lulu no colo e Ramiro deu o sinal para me resgatarem.
Todos saíram ilesos e sorridentes. Maria chorava e ria.
Um dos bombeiros entrou e foi buscar o peixinho, os patins e as luvas de beisebol de Gil. Ele havia esquecido.
Após os bombeiros nos tirarem, procurei por meu pai.
― Onde está papai?
― A clínica desmoronou e ainda estamos tirando as pessoas de lá. O Dr. Silva nos disse onde vocês estavam. Ele está bem, mas quebrou as duas pernas. Não pode vir nos ajudar. ― informou o bombeiro.
Nossa casa desapareceu. Ela era o entulho sobre o abrigo.
Ficamos em outra cidade enquanto papai se recuperava e a cidade era reconstruída.
Dois anos após o tornado, voltamos. Uma nova casa nos esperava.
No meu novo quarto, coloquei o retrato da mamãe no lugar. Eu sempre conversava com ela.
― Mamãe, onde você está tem tornado? Como é esse lugar?
Desse dia em diante, passei a pensar como é o lugar onde ficamos após a morte. Como chegamos lá? Deus está lá? Como viramos anjos? Papai dizia que mamãe tinha se tornado um anjo. Comecei a questionar e procurar essas respostas. Foi assim que iniciei minha busca pela espiritualidade.
Levei muito tempo, mas cheguei ao lugar que eu procurava. Eu sou um anjo.
Moacir, Cavaleiro da Luz Azul.