Filha de um embaixador inglês, nasci no território africano. Miriam foi o nome escolhido para mim.
Sofia, minha mãe, detestava aquela terra por ser muito quente e passávamos a maioria dos dias na Inglaterra. A cada seis meses íamos visitar meu pai.
Meu pai fundou uma escola na cidade e para incentivar os outros moradores a colocarem seus filhos na escola, exigiu que a esposa viesse morar com ele e trouxesse os filhos. Eu tinha mais dois irmãos mais novos, Henrique e Leonardo.
Era uma escola tradicional, com muros altos. Meninos em um prédio, meninas em outro.
Não havia nenhuma criança africana na escola.
Cresci passeando e conhecendo os habitantes locais. Apaixonei-me pela África. Meu pai caçava e eu uma vez o acompanhei e fiquei horrorizada ao vê-lo matar uma leoa. Chorei e quis voltar para casa. Nunca mais fui convidada para uma caçada.
Na adolescência fundei um hospital para cuidar das crianças africanas e uma reserva para cuidar de animais selvagens. Fui chamada de louca. Meu pai era muito rico e não se importava com o que eu gastava. Eu era a favorita dele. Minha mãe estava sempre em Londres e meu pai desistiu de convidá-la para ficar conosco.
Eu tinha muitos empregados regionais para me ajudar a cuidar das crianças e dos animais. Fiz um curso de veterinária para ser útil. Contratei vários profissionais da área e cuidávamos de leões. Eu adorava meus “gatinhos”, meu pai morria de medo deles e queria caçá-los.
Havia uma leoa, Bernadete, que eu criei desde o nascimento. Ela sempre ficava por perto. Eu sempre tinha ração especial para ela e sabia de guloseimas que ela adorava.
O clima político ficou estranho e meu pai recebeu ordem de abandonar o país e me disse:
― Miriam, arrume suas malas, estamos de partida. Precisamos deixar o país imediatamente.
Não me conformei.
― Não deixarei meus animais, papai. Preciso arranjar uma equipe para cuidar deles. Preciso de uma semana ou mais.
― Saímos em duas horas. Esteja pronta ou mando matar todos eles, assim você não tem com o quê se preocupar.
Meu coração gelou. Conhecia meu pai e sabia que ele faria o que disse.
Corri para a reserva e orientei os meus ajudantes, despedi-me de Bernadete e a mandei se proteger até eu voltar. Minhas malas estavam prontas. Embarcamos e enquanto o avião sobrevoava o local, vimos nossa casa ser invadida por revolucionários.
― Se estivéssemos lá, seriamos mortos, Miriam. ― falou meu pai.
Eu continuava chorando. Pensei em todos os animais que estavam em tratamento e senti que seriam mortos. Torci para Bernadete fugir, ela conhecia bem a região, inclusive lugares onde eu costumava acampar.
Por muitos meses esperei que a revolução terminasse. Finalmente meu pai recebeu ordem para voltar e comandar com firmeza e aniquilar os que ainda tinham esperança de libertação.
Voltei com ele. A reserva estava intacta, os meus ajudantes, comandados por Alencar, continuavam cuidando e recebendo animais feridos ou doentes. Soube que Bernadete correu atrás do avião em que entrei. Não voltou desde então.
Comecei a procurar por Bernadete, mas fui proibida de me afastar da reserva. Um batalhão inteiro me acompanhava, era a minha guarda pessoal.
Alguns dias depois, o consulado no qual eu morava, foi atacado e estávamos em menor número.
― Vá para a reserva, Miriam. Seus amigos a esconderão. ― ordenou meu pai.
― Vem comigo papai, eles o ajudarão também.
― Não! Vá logo ou não conseguirá sair.
― Fugi para a reserva. Vi meu batalhão de proteção ser chacinado pela equipe da reserva. Olhei espantada. Não acreditei.
Alencar me disse: somos guerrilheiros. Fique aqui, está sob nossa proteção. Você é nossa amiga.
― O que acontecerá com meu pai? ― perguntei, chorando.
― Não posso fazer nada por ele. Sinto muito.
Um batalhão inglês chegou no consulado e matou todos os guerrilheiros.
Alencar deu ordem para todos fugirem.
― Fique aqui, dona Miriam. Continue cuidando de nossas crianças e animais. Sempre seremos seus amigos.
Todos os guerrilheiros foram pegos e mortos, inclusive Alencar.
Algum tempo depois, eu consegui formar uma nova equipe, tanto no hospital, como na reserva dos animais.
Alguns meses depois, minha mãe ficou doente e fui chamada, pois ela queria me ver.
A mansão em que minha mãe morava era linda. Entrei e fui direto ao quarto dela. Ela estava mal. Sentei-me ao lado dela.
― Estou aqui, mamãe. Você queria me ver?
Ela sorriu para mim.
― Tenha cuidado, alguém a odeia muito lá na África. Mandaram um presente para você, mas eu nunca o entreguei. Sei que você adora leões. Ela entrou em convulsão e morreu.
Após o enterro, eu fiquei pensando nas últimas palavras dela. Não entendi o que ela quis dizer. Alguém me odiava, um presente que ela nunca entregou e que eu adorava leões. Não fazia sentido.
Brandon, o mordomo, anunciou a presença do advogado da família. Ele me esperava no escritório.
No escritório fui informada que o testamento de mamãe seria lido aquela noite. Os meus dois irmãos estariam presentes.
O advogado se retirou e fiquei sentada na cadeira giratória de mamãe, girei e olhei para a lareira. Tinha um tapete de leão em cima da poltrona lateral.
Meu coração quase parou, doeu e comecei a chorar. Não podia acreditar no que estava vendo. Levantei e minhas pernas não me aguentaram e cai ajoelhada, me arrastei e acariciei a cabeça da leoa: Bernadete, meu amor.
Ouvi:
“ Não chore! Ela está comigo. Veja, ela está bem”.
Olhei para ver quem havia dito aquilo e vi Alencar e Bernadete.
Tentei falar, mas a visão foi sumindo enquanto ele sorria para mim.
Brandon entrou e foi me socorrer. Levei algum tempo para me recuperar. Ele me contou que o presente foi anônimo, mas mamãe achou muito estranho aquela leoa ser parecida com a que eu mandava fotos.
Disse ao Brandon que alguém matou a minha leoa e fez um tapete, que eu estava correndo perigo e mandou me chamar.
Meu pai deu ordens para descobrirem o responsável e dobrou o número de seguranças meus e dele. Eu nunca soube quem matou Bernadete.
O dia em que herdei a imensa fortuna deixada por minha mãe, incluindo a mansão que ela morava, também foi o dia mais triste: enterrei minha mãe e chorei por Bernadete, o grande amor da minha vida.
Um dia sem glórias.
Voltei para a África, levei o tapete da Bernadete e o enterrei em um lugar onde eu costumava acampar com ela. Era nosso passeio favorito.
No hospital das crianças, um novo médico inglês assumira a enfermaria na minha ausência. O nome dele era Christian. Um ano depois nos casamos.
Meu pai voltou para a Inglaterra, mas eu fiquei na África. Nosso hospital cresceu e passou a atender também adultos. Não tivemos filhos.
Estudei fenômenos paranormais e alucinações, mas não consegui entender a visão que tive. Nunca contei para ninguém a minha visão, mas sei que foi real e comecei a pesquisar a vida após a morte, sem sucesso, mas foi o meu despertar.
Fim
― Obrigada, Miriam. Adorei sua vida cheia de amor pelos animais.