Eu fiz experiências em corpos físicos e sofri todas as espécies de desequilíbrios próprios da densidade e da falta de memória.
Meu pai escolheu o nome de Ari, quando nasci em um povo antigo, guerreiro e temido. Isso tornou a minha infância mais tranquila. Plantávamos, colhíamos, nos divertíamos. Na minha juventude, um povo veio de longe e nos atacou.
Eu morava perto do centro do governo e só soubemos que um grande exército estava se aproximando. Foi um corre-corre. Eu nunca havia pego em uma arma, mas ganhei uma e recebi ordem de entrar no batalhão e impedir o inimigo de chegar até nossa cidade. Não havia opção, se não lutássemos por nossa casa, família e amigos, seriamos mortos por eles. O jeito foi seguir e aprender a manejar o arco com soldados que segui.
Houve o encontro dos dois exércitos e eu não sei como sobrevivi. Expulsamos os invasores. Ao olhar o campo de batalha, meu coração doeu. Eram tantos cadáveres, entre eles alguns ainda se mexiam. Os inimigos eram mortos. Os nossos, como falava o comandante, nós tentávamos em vão ajudá-los. Eram muitos e não havia carroças suficientes para carregá-los. A maioria ficou lá, à espera da morte.
Aquela visão jamais se apagou de minha memória. Comecei a questionar. Por que um povo saia de seu território para matar outro ou morria tentando?
Um soldado dissera que a morte era um ente que vinha com uma foice e levava a alma do defunto.
Levava para onde? A alma estava viva?
Tentei conversar com sacerdotes que benziam os heróis que voltaram vitoriosos. Eles alegaram que não tinham tempo, precisavam comemorar a volta dos heróis. Eu não entendia. Heróis? Éramos um bando de soldados feridos, traumatizados, tristes, perdidos em tormentos sobre o horror vivido. Fui para casa.
Minha mãe chorava, meu pai e meus irmãos não voltaram. E eu nem os procurei, não sabia que eles também foram defender a região. Chorei com ela e com minha irmã. Essas lágrimas me aliviaram um pouco.
Agora eu era o responsável pela família. Manter a plantação exigia muito trabalho, eu não me incomodava.
Fui ao templo e perguntei ao sacerdote para onde a morte tinha levados as almas daqueles homens.
O sacerdote me olhou desconfiado.
Isso não é assunto para um agricultor. Somente sacerdotes tem direito de saberem isso.
― Matei muitos daqueles homens. Perdi meu pai e dois irmãos. Eles foram levados para o mesmo lugar?
Continuam se matando lá? Como fico conhecendo o mundo dos mortos?
O sacerdote me olhou com pena.
― Essas respostas não estão disponíveis. Somente alguns videntes são privilegiados através de suas visões com relances de alguns momentos. Nem sempre entendível. Eu não sou um desses. Também procuro essas respostas.
Fui para casa desiludido. Eu não conhecia nenhum vidente e nem sabia onde encontrar um. Passei a questionar o sol, a lua, as estrelas, o tempo e não obtive nenhuma resposta.
As pessoas começaram a me olhar estranhamente. Eles me consideram esquisito. Muitos se afastaram.
Quando eu estava velho, doente e acamado, sonhei. Um ente com uma foice veio em meu sonho, sentou-se ao meu lado e perguntou:
― Está pronto?
― Para onde vai me levar? Encontrarei os mortos da guerra? Meu pai, meus irmãos?
― Se quiser ir com seu pai, ele pode estar na guerra, ou em lugar pior. Por que simplesmente não continua a sua busca para saber como funciona o mundo dos mortos? A escolha é sua. Eu apenas o lembro que é hora de partir.
Acordei e vi minha irmã tentando abaixar minha febre.
― A morte vem me buscar e agora saberei o que acontece no mundo dos mortos. Obrigado, seja feliz, minha irmã. Você é uma boa pessoa e eu gosto muito de você.
Levantei e segui a morte.
De repente, o manto negro virou violeta, o esqueleto virou um homem que sorriu para mim. Não havia mais a foice, somente uma luz violeta que o envolvia.
Voltei algumas vezes, em experiências densas de um corpo físico, mas sabendo que não existe mundo dos mortos e sim, a continuidade de vida do espírito.
Fim
Obrigada Ari.