Ao escolher narrar os acontecimentos dessa vida, sorri da minha inocência, ou da minha ignorância, como quiser.
Nasci num vilarejo distante de centros comerciais. Daniel foi o nome escolhido pela minha mãe. Meus pais viajavam levando suas mercadorias no lombo de um burro. Íamos pelas estradas, parávamos enquanto minha mãe preparava nossa alimentação e para dormirmos. Éramos nômades. Meu pai levantava a tenda para nos abrigarmos da chuva, do vento e termos um pouco de privacidade.
Sempre que passávamos por casas eu tinha vontade de entrar e saber como era morar em uma. Pedi várias vezes para meu pai construir uma casa.
― Casa? Ora, nós somos livres. Por que você quer ficar preso a um lugar?
Eu nunca soube responder isso.
Cresci. Fazia tapetes como aprendera com minha mãe e meu pai. Vendíamos para casas luxuosas. Eles ficavam lindos.
Meu sonho de morar em uma casa aumentou. Meus pais estavam velhos e caminhavam com dificuldade, mas se recusavam a morarem em uma casa. Ficavam em suas tendas. Fiquei com eles até darem o último suspiro.
Comecei a levantar minha casa. Tinha dinheiro, não gastávamos praticamente com nada, só ferramentas. Nossos tapetes eram vendidos bem caros. Enfim, minha casa ficou pronta. Era bem bonita. Na minha sala, tinha o tapete mais trabalhado e belo que eu já fizera.
Comecei a me relacionar na comunidade e logo fui considerado um bom partido para as famílias de comerciantes. Casei-me.
A minha esposa, Ariela, era gentil, alegre e gostava de joias. Me fez comprar muitas. Passaram três anos e ela não me deu filhos. Perguntei o que havia de errado e ela chorou. Não era fértil. Já fizera tudo que as mulheres velhas ensinaram.
Fiquei quieto. Gostava dela e não tinha intenção de mandá-la embora.
Eu plantava algumas ervas e legumes para extrair a cor e tingir minhas lãs e linhas para os tapetes. Passava a manhã inteira nos meus canteiros, mas nesse dia resolvi andar na praça e conhecer as novidades. Vi Ariela conversando com um estranho. Isso me enfureceu. Como ela saíra de casa sem minha permissão e se expunha conversando com um homem que não era da família?
Ela me viu e saiu correndo. O homem continuou no mesmo lugar e cheguei até ele.
― Joias, senhor? Tenho ouro, prata. Colares, pulseiras, anéis…
― Conhece aquela mulher que saiu correndo? ― perguntei furioso.
― Cliente. Boa cliente, compra muitas joias. Marido muito rico, dá tudo que ela quer.
― Sou o marido. O que ela comprou?
O vendedor olhou espantado.
― Pensei que o senhor não andasse. Ela comprou duas pulseiras e um par de brincos.
Sai irritado. Fui para casa.
Ariela estava na sala, esperando por mim.
― Como se atreveu a sair sem o meu consentimento?
― Perdão, marido. Isso nunca mais se repetirá.
― Onde estão as joias que comprou sem a minha autorização?
Ariela tirou duas pulseiras do braço e os brincos.
― Traga todas as joias que comprou.
Ariela olhou amedrontada. Arregalou os olhos e gaguejou:
― Eu só comprei essas.
Perdi a paciência e peguei um chicote.
― Quer que eu a espanque em praça pública e depois a expulse de minha casa? Mentirosa!
Ariela se encolheu e foi chorando para o quarto e eu a segui.
Havia quatro baús lotados de joias.
― Quero todos― gritei.
― Os outros dois baús estão na casa de minha mãe. ― disse, chorando.
― Por quê? Há quanto tempo você faz isso? Mente para mim com a ajuda de sua mãe?
― Desde que descobri que não poderia lhe dar filhos. A qualquer momento você me devolverá para minha família, somente com a roupa do corpo. Terei de esmolar. Meu pai gastou tudo com mulheres vulgares e bebidas. Só tem o que comer, porque minha mãe vende as joias que eu levo. Sei que não mereço perdão, por isso não pedirei. Não me chicotei em público. Mande que me apedrejem, por favor. Eu não quero esmolar.
Fiquei sem palavras e com muita raiva.
Arrastei-a para o quarto e a tranquei lá. Fui para a casa do meu sogro, ele estava bêbado, tão bêbado que não parava em pé.
― Devolva todas as minhas joias ou mandarei queimá-la viva e a sua filha também. ― falei cheio de ódio.
Dona Dina olhou apavorada para mim e se ajoelhou.
― Perdão! Não machuque minha filha. Eu lhe devolvo tudo. Abner não sabe de nada, desde que seu sócio o roubou ele só se embriaga.
Dona Dina me levou até os baús que estavam escondidos no sótão. Eram dois baús enormes e abarrotados de joias.
Fechei os olhos e pensei: como sou rico, tenho uma fortuna imensa e trabalho como um servo.
Peguei os baús e levei-os para casa. Tranquei-os no porão, com minhas ferramentas e materiais que só eu mexia.
Abri a porta do quarto e Ariela estava sentada na cama.
― Já decidiu o que fará comigo?
― Sim, Ariela. Eu nunca pensei em devolvê-la, porque eu gostava da sua companhia. Não gosto mais, agora vou devolvê-la, como manda a lei.
Daniel pegou Ariel pela mão e a arrastou até a casa dos pais.
― Tem de volta sua filha, que não me deu herdeiros, sai sem minha permissão e ainda me rouba. Não a quero mais. ― virei as costas, fui embora.
Ariela se ajoelhou e pediu perdão. Ignorei-a. Empurrei-a de minha frente e segui o meu caminho.
Tranquei-me em casa e pela primeira vez passei o dia sentado, sem vontade de fazer nada. A noite chegou, deitei.
Senti falta de Ariela. Ela era divertida, falava o tempo todo e sempre tinha histórias para contar.
Os dias se passaram e cada vez mais eu detestava aquela casa. Era silenciosa, estava suja. Nem os tapetes eu tinha vontade de fazer.
No dia seguinte, acordei e pensei: venderei todas aquelas joias e voltarei a ser nômade. Não serei mais prisioneiro desta casa.
Vendi as joias e a casa. Comprei uma mula, uma carroça puxada por quatro bois. Coloquei meus tapetes, minhas ferramentas e fui embora.
Continuei triste. Meus dias não tinham alegria. Minhas noites era solitárias e somente quando sonhava com os risos de Ariela, meu coração se alegrava.
Resolvi voltar e buscá-la.
Quando cheguei à casa do pai dela, estava fechada. O vizinho me contou que o pai morrera de tanto beber e as duas mulheres foram embora, pois a casa pertencia a outra pessoa.
Peguei a estrada por onde elas saíram. O vizinho dissera que elas haviam saído a menos de duas horas e estavam a pé.
Acelerei a marcha. No final da tarde, encontrei as duas mulheres. Elas estavam exaustas e me olharam surpresas.
― Querem uma carona, ofereci.
Ariela sorriu.
― Queremos. Se tiver mantimentos, podemos cozinhar. Tem uma barraca igual a do teu pai, para descansarmos?
― Tenho. Aqui não é um bom lugar. Subam na carroça, precisamos de um lugar perto de um rio. Não dá para cozinhar sem água.
Dona Dina secava as lágrimas com seu lenço de cabeça.
― Obrigada! Nos perdoou? ― perguntou dona Dina.
― Não! Eu jamais perdoarei um ladrão. Para Ariela, farei uma concessão.
À noite, eu ouvi dona Dina rezando e implorando perdão por ter me ofendido. Que ela fosse perdoada, pois arruinara a vida de sua filha com seus maus conselhos.
No dia seguinte,
― Dona Dina, para quem a senhora perde perdão?
― Para Deus. Quando morrer, eu quero ir para junto dele.
― E se ele não a perdoar? ― perguntei.
― Irei para o inferno.
Lembrei de meus pais, eles não rezavam. Nunca aprendi a rezar.
Para onde será que eles foram? ― pensei.
Ariela disse que pedira perdão a Deus por enganar o marido bom e amoroso. Ela havia sido perdoada. Voltei para ela.
Desse dia em diante, passei a perguntar para Deus:
― Você existe? Por que tenho que morrer para ficar ao seu lado? O que preciso fazer para ter essas respostas?
Continuei em busca dessas respostas.
Daniel, anjo da Chama Azul.
Fim
Obrigada Daniel.