Nasci na América Central, em uma ilha pequena, chamada Ilha da Juventude.
Um lugar lindo. Meu nome era Alexandro. Francisco, meu pai, era pescador. Minha mãe Maria e três irmãs, Isabel, a mais velha com dezesseis anos, Dolores com quinze e Marta com quatorze. Minha família era linda, éramos unidos e felizes.
Um dia, três navios chegaram inesperadamente e os tripulantes invadiram nossas casas, desrespeitaram nossas mulheres, tomaram o que tínhamos de valor e mataram os que se revoltaram. Fomos chamados de selvagens. Eu tinha 12 anos e durante o ataque meu pai mandou eu fugir para a mata e me proteger.
Não deveria voltar enquanto os navios estivessem lá.
Fugi. Corri o que minhas pernas permitiram.
A vida no mato era muito diferente da que eu conhecia. Passei fome e muito medo. Um sentimento estranho começou a nascer dentro de mim. Eu senti vontade de voltar e matar todos, assim eles nunca mais voltariam. Preparei flechas, lanças compridas de pesca, zarabatanas, tacapes e armadilhas.
Tornei-me um guerrilheiro noturno. Eu sabia preparar uma pasta que anestesiava a vítima. Usava na zarabatana. Matava os vigias, os bêbados e qualquer pirata que cruzasse o meu caminho e colocava minha marca de sangue neles. Eu desenhava um círculo com o próprio sangue dele e no meio eu desenhava uma cruz com carvão. Isso não foi uma invenção minha. Nas histórias que ouvi nas rodas das fogueiras, havia um espírito do mal que fazia isso. Era apavorante para nós, os locais. Agora seria para os invasores estrangeiros também.
Percebi que os vigias agora eram em três e ao menor ruído eles se preparavam para enfrentar o assassino, no caso eu.
Tive que mudar a minha estratégia. Passei a usar veneno na zarabatana. Matava de longe e mesmo os que se atreviam a me procurar recebiam uma seta letal com veneno.
Eu sempre apagava minhas pistas e meu esconderijo era em lugar alto onde eu tinha visão total de qualquer movimento.
Patrulhas começaram a me caçar durante o dia. Eles não acreditavam em espírito do mal.
Eu conhecia cada palmo da ilha e sempre me mantive distante e em lugares inacessíveis aos estrangeiros.
Preparei armadilhas para as patrulhas e acabei com elas e com a vontade deles entrarem na mata. Usei os corpos deles e os deixei em exposição, amarrados nas árvores, pendurados e sempre com a minha marca.
Não sei quanto tempo isso durou. Os navios foram embora e os habitantes da ilha mataram os invasores que ficaram, então pude voltar.
Não reconheci minha família. Minha mãe estava envelhecida, meu pai foi espancado até a morte por tentar proteger minhas irmãs dos invasores. Minhas irmãs carregavam crianças em suas barrigas e não tinham vontade de viver. Chorei, chorei muito.
Isabel me abraçou e disse:
― Todos os dias eu rezava para quem estava se passando por um espírito vingador viesse e encontrasse esses vagabundos e os matasse. Minhas rezas foram atendidas, eles nunca mais voltaram. Tinham tanto medo de sair à noite, que ficavam no navio. Quando eles foram à floresta e viram o que aconteceu com os amigos, ficaram apavorados.
Dolores perguntou:
― Onde você se escondeu durante tanto tempo? Rezávamos por você todos os dias.
― Na floresta. Pescava e caçava do outro lado da ilha. Passei fome no começo. ― respondi.
― Quantos se esconderam com você? ― perguntou Marta.
― Ninguém fugiu para a floresta. Eu fui o único.
― Mamãe sonhou que você preparava armadilhas com lanças enterradas e os piratas caíram nela. Isso aconteceu?
― Sim. Várias vezes. Mas eu já desativei todas. Ninguém morrerá mais.
Elas riram e me abraçaram.
― Esse segredo é nosso e morreu aqui. ― falou minha mãe.
A família cresceu, os filhos das minhas irmãs nasceram saudáveis, todos homens. Minha mãe se encantou por eles.
Houve um silêncio na ilha sobre os nascimentos das crianças geradas pelos piratas. As famílias as receberam e nunca se tocou no assunto sobre quem eram os pais.
Minha mãe disse aos netos que os pais foram navegar e o mar os levou.
Minhas irmãs nunca esqueceram o horror que viveram. Continuamos nossas vidas com amor e fé e deixamos a alegria das crianças nos contagiar. Voltamos a ser felizes. As três se casaram e formaram suas famílias. Mamãe criou os filhos dos piratas como se fossem dela.
Casei e tive dois filhos. Passei a pescar e nossa ilha estava se recuperando quando mais navios chegaram. Chamei minha mãe e irmãs e disse:
― Vamos para a floresta. Lá, eu posso defendê-las.
“Não! Esses não são piratas. Eles não vão atacar nossa gente. Fique e os receba gentilmente. ”
Ouvi a voz de meu pai e virei para vê-lo. Ele sorriu para mim e desapareceu.
― Vocês ouviram o que o pai disse?
Minha mãe e minhas irmãs olharam para mim de um modo estranho.
― O pai disse para ficarmos, eles não são piratas.
Elas continuaram a olhar, surpresas, para mim.
― Seu pai morreu, meu filho. Ele não pode falar com você. ― chorou minha mãe.
― Tem razão, minha mãe, meu pai morreu.
Fiquei sem ação. Eu tinha certeza de que por alguns momentos ele esteve aqui e falou claramente comigo, sorrindo.
Não fomos para a floresta e não houve invasão. Eles queriam água, compraram comida e fizeram trocas com os moradores.
Éramos politeístas, descendentes dos maias e acreditávamos em vários deuses e deusas. Adorávamos os antepassados falecidos e participávamos de rituais intermediados por seus espíritos. Praticávamos cultos com o uso de alucinógenos. Eu apresentei sacrifícios humanos aos deuses. Cada pirata que matei, ofereci como sacrifício.
Quando tive a visão do meu pai, eu não estava sob o efeito de alucinógenos, não era um culto, nem praticava algum ritual. Foi real. Por isso passei a questionar o uso de alucinógeno e dos rituais.
Nunca mais meu pai falou comigo. Eu rezava e falava com ele, mas ele não respondia. Minha visão foi muito lúcida e eu tive certeza de que ele vivia no mundo dos mortos. Existem dois mundos? O dos vivos e dos mortos? Eu me questionava, porém, nunca soube essas respostas, mas foi o meu despertar.
Fim
Obrigada Gentil.